Café
O café no Brasil: a concentração de terras e as alternativas da Reforma Agrária Popular

Sérgio Pedini*
Da Página do MST
No Brasil, o café ocupa um espaço que vai além do paladar. Presente no
cotidiano de milhões de brasileiros, ele carrega marcas do ado, impulsiona
exportações e representa, para muitos, um símbolo da identidade nacional. No entanto,
por trás dessa tradição tão celebrada, há uma realidade pouco discutida. Em vez de
apenas comemorar o Dia Nacional do Café, em 24 de maio, talvez seja mais urgente
olhar para quem está no início dessa cadeia e entender por que, mesmo sendo o maior
produtor mundial, o país ainda falha em garantir condições dignas a quem planta e colhe
o grão, com sustentabilidade.
Latifúndio: uma raiz histórica da cafeicultura brasileira
A produção cafeeira brasileira remonta ao século XVIII, com expressiva
expansão no século XIX, especialmente no Vale do Paraíba e no oeste paulista. Esse
processo consolidou um modelo de grandes propriedades rurais voltadas à exportação,
baseadas no trabalho escravizado. Mesmo após a abolição da escravidão em 1888, não
houve redistribuição de terras, perpetuando a estrutura de poder dos latifundiários. A
mão de obra ou a ser composta majoritariamente por imigrantes europeus, que,
embora formalmente livres, encontravam-se em regimes de exploração e dívidas.
Do trabalho escravizado ao trabalho precarizado
Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (T), a cadeia do café está entre
os setores com maior número de resgates de trabalhadores em situação análoga à
escravidão no Brasil. Segundo a Articulação dos Empregados Rurais do Estado de
Minas Gerais (Adere-MG), com base em informações do Ministério do Trabalho, desde
1995, mais de 65 mil pessoas foram resgatadas de condições análogas à escravidão no
Brasil. Em 2023, o país registrou 3.240 trabalhadores libertados, o maior número desde
- Já em 2024, foram registrados 2.004 resgates.
Os relatos colhidos em operações do Ministério do Trabalho e denunciados pela
ADERE, apontam para jornadas extenuantes, alojamentos insalubres, falta de o à
água potável e ausência de equipamentos de proteção. Ainda que não sejam as
condições de escravidão contemporânea, os trabalhadores dos cafezais convivem com
baixos salários, contratos temporários, informalidade e insegurança laboral.
Apesar dos altos valores nas bolsas internacionais, os ganhos dificilmente
chegam ao agricultor e, principalmente aos trabalhadores. É o paradoxo do país que
ostenta o título de maior produtor e exportador mundial, mas não garante direitos
básicos a seus trabalhadores rurais.
Concentração fundiária e desigualdade nas regiões cafeeiras
Apesar da importância da agricultura familiar para a economia e a segurança
alimentar, o Brasil ainda é marcado por uma profunda concentração fundiária. Segundo
o Censo Agropecuário de 2017, apenas 1% das propriedades rurais detêm quase 50%
das terras agrícolas.
Essa desigualdade é especialmente visível nas regiões cafeeiras. No sul de Minas
Gerais, por exemplo, grandes fazendas dominam vastas áreas, muitas delas operadas sob
arrendamentos e sistemas de produção integrados a grandes torrefadoras. Agricultores
familiares têm o limitado à terra e muitas vezes atuam como meeiros ou diaristas,
em condições precárias e sem formalização.
A forma como a terra está distribuída no Brasil não é obra do acaso, tampouco
consequência neutra da história. Trata-se de um arranjo construído com base em
decisões políticas que, ao longo do tempo, favoreceram determinados grupos. O
resultado se vê no campo: famílias sem-terra, num modelo que segue beneficiando os
grandes exportadores. A ausência de uma reforma agrária que de fato enfrente essa
estrutura mantém milhares de trabalhadores longe do direito à terra e fortalece a lógica
do agronegócio voltado apenas ao mercado externo.
A alta do preço do café: clima, mercado e especulação

Nos últimos anos, o preço do café tem experimentado uma alta expressiva. Em
maio de 2025 o valor da saca superou os R$ 2.500, impulsionado por uma combinação
de fatores. A quebra de safra no Brasil, causada por geadas e secas prolongadas, reduziu
a oferta e pressionou os preços. Além disso, o aumento nos custos de produção
(fertilizantes, combustíveis e insumos importados) agravou o cenário.
Os contratos futuros de café, negociados nas bolsas de Nova York e Londres,
são influenciados por investidores que pouco ou nada têm a ver com a produção real.
Essa lógica financista contribui para a volatilidade dos preços, beneficiando
intermediários e grandes exportadores, mas penalizando produtores e consumidores.
No Brasil, essa alta se traduziu em aumentos consideráveis no preço do café
torrado. De acordo com o IBGE, o café moído acumulou alta de quase 60% nos últimos
três anos. No entanto, esse aumento não significou melhores condições de vida para os
trabalhadores do campo, tampouco ganhos reais para os agricultores familiares.
Quem lucra com o café caro?
No centro dessa engrenagem estão as grandes torrefadoras e exportadoras de
café. Empresas como Nestlé, JDE, Starbucks, Três Corações entre outros, controlam
uma fatia expressiva do mercado, desde a compra do grão até a industrialização e
comercialização.
A verticalização da cadeia produtiva concentra os lucros em poucas mãos e
limita a autonomia dos produtores. Além disso, as marcas internacionais costumam
vender cafés especiais a preços elevados no exterior, mas pagam valores muito baixos
na origem. A lógica colonial persiste: o Brasil fornece a matéria-prima, enquanto o
valor agregado se realiza fora do país.
A negação da dignidade: entre a xícara e o cafezal
Há algo que salta aos olhos quando se olha com calma para o caminho que o
café percorre entre o campo e a xícara. O Brasil exporta para mais de uma centena de
países e fatura bilhões com esse grão, mas, ao mesmo tempo, ainda não foi capaz de
garantir o mínimo de dignidade a quem planta, colhe e carrega o peso dessa riqueza nas
costas.
Nas zonas rurais, a realidade dos trabalhadores segue dura. Muitos ainda vivem
em alojamentos improvisados, barracões sem conforto, onde falta água potável, sobra
poeira, e o o à saúde e à educação é um luxo distante. A informalidade é a regra, e
os direitos trabalhistas continuam sendo negados ou ignorados, segundo a ADERE.
Nas cidades, longe dos cafezais, o mesmo grão assume outro papel. Ganha
embalagens sofisticadas, nomes estrangeiros e é servido com rituais em cafeterias
refinadas. Quem consome muitas vezes não imagina, ou prefere não saber, o que está
por trás daquele aroma. A bebida que representa conforto e prazer para uns, carrega,
para outros, marcas de descaso e desigualdade.
Essa distância entre quem consome e quem produz escancara uma ferida antiga:
a do país que cresceu com base na exploração, e que ainda não rompeu com essa lógica.
O café, símbolo nacional, revela, em sua trajetória, o espelho de um Brasil que insiste
em virar o rosto para aqueles que sustentam, silenciosamente, sua economia.
A Reforma Agrária como alternativa

Diante desse cenário, as experiências de produção de café em áreas de reforma
agrária despontam como contraponto. Em diversos assentamentos espalhados por Minas
Gerais, Espírito Santo, Bahia e São Paulo, famílias organizadas em cooperativas têm
produzido cafés de qualidade, com práticas agroecológicas.
Um exemplo emblemático é o café Guaií, produzido por cooperados do
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no sul de Minas Gerais.
Cultivado sem agrotóxicos, em pequenas áreas diversificadas, o café Guaií representa
não apenas uma alternativa econômica, mas uma proposta política de soberania
alimentar, valorização do trabalho coletivo e respeito ao meio ambiente. E com alta
qualidade.
Agroecologia e cooperação: caminhos para o futuro
A agroecologia, ao contrário do modelo convencional, parte do princípio da
integração entre produção agrícola, biodiversidade e saberes locais. Nos assentamentos
da reforma agrária, ela surge como uma resposta à lógica predatória do agronegócio.
A produção cooperativa permite a organização dos trabalhadores em sistemas
que distribuem melhor os lucros, fortalecem as comunidades locais e reduzem a
dependência dos intermediários. Além disso, os circuitos curtos de comercialização
(feiras, compras públicas, vendas diretas) criam relações mais justas entre produtores e
consumidores. Sem esquecer dos grandes mercados e de exportações, como forma de
garantir a renda dos cooperados.
Esses projetos enfrentam desafios: falta de crédito, dificuldades logísticas,
preconceito e criminalização. Ainda assim, representam uma esperança concreta de que
outro modelo de produção e consumo é possível.
Para além do aroma do café, o cheiro de mudança
O Dia Nacional do Café deve ser mais que uma celebração da bebida. Deve ser
um convite à reflexão crítica sobre quem planta, quem colhe, quem lucra e quem
consome. A produção de café no Brasil evidencia contradições estruturais que envolvem
concentração de terras, exploração do trabalho e dependência de mercados externos. Ao
mesmo tempo, iniciativas baseadas na reforma agrária e na agroecologia apontam
caminhos possíveis para um modelo mais justo e sustentável.
O reconhecimento e o apoio a essas formas de produção requerem mudanças nas
políticas públicas e no comportamento dos consumidores. Ao refletir sobre o papel do
café na sociedade brasileira, é fundamental considerar não apenas a bebida, mas os
processos sociais, políticos e econômicos que a sustentam.
Como escreveu Eduardo Galeano, em uma imagem tão simples quanto poderosa:
“O mundo é isso: um montão de gente, um mar de fogueirinhas.” Que cada xícara seja
uma chance de escolher qual chama se quer alimentar, se a que aquece apenas o
consumo, ou a que ilumina a transformação.
*Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sul de Minas
Gerais – membro do GEPLAN – Grupo de Estudos e Planejamento do
IFSULDEMINAS.
**Editado por Priscila Ramos