Mulheres Sem Terra

Mulheres Sem Terra: força, resistência e sabor na produção agroecológica

Leia cinco relatos de mulheres Sem Terra de diferentes regiões, que contam sua tragetória de luta pela Reforma Agrária Popular

Mulheres Sem Terra produzindo. Foto: Janaina dos Santos

Por Hanyelle Ohane /Setor de Gênero do MST
Da Página do MST

Na luta pela terra e por justiça social, as mulheres do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) têm ocupado um espaço fundamental, mostrando que o protagonismo feminino é vital para transformar o campo brasileiro. Em meio às sementes, plantações e agroindústrias, elas reconstroem histórias, desafiam imposições sociais e conduzem um processo coletivo de resistência.

Nesta edição da coluna Aromas de Março, trazemos relatos vivos e inspiradores de cinco mulheres Sem Terra de diferentes regiões do país — do Ceará ao Mato Grosso, do Pará ao Sul — que contam suas trajetórias de luta, organização e produção agroecológica. São histórias que revelam o papel das mulheres na construção de um novo modelo de produção e comercialização, pautado na agroecologia, na cooperação e na valorização da vida no campo.

Entre desafios e conquistas, suas vozes nos lembram que sem as mulheres a luta vai pela metade — e que cada fruto colhido representa um o firme rumo à Reforma Agrária Popular, com sabor e aroma de esperança e ousadia.

Tuíra – Minas Gerais (Sudeste)

Tuíra Tule. Foto: Hanyelle Ohane

Eu sou Tuíra Tule, sou assentada no Quilombo Campo Grande, sou das terras do Café Guaíi, onde sai o nosso café, que é de muita resistência, além de ser muito gostoso, fruto da nossa luta.

Faço parte do coletivo de mulheres Raiz da Terra, coletivo de mulheres que já tem 13 anos de existência, que organiza não só a produção, mas onde a gente também trabalha com a formação da consciência.

No nosso estudo, conseguimos organizar a produção a partir das plantas medicinais, também o processamento de frutas e vegetais e uma imensidade de produção de diversidade. Produção de gergelim, amendoim e beneficiamento de muitas coisas.

Nós, do Movimento Sem Terra, hoje temos mais de 200 cooperativas e o nosso papel, das mulheres sem terra, na construção e na produção da matéria-prima, é na sua imensa diversidade.

Nós que estamos aqui na 5ª Feira Nacional da Reforma Agrária, com mais de 1.800 produtos, somos parte dessa grande produção. Grande parte vem das nossas cooperativas, então a gente está na produção da matéria-prima e nesse desafio para nós que é desenvolver a cooperação dentro desse sistema que a gente vive.

A cooperação seja da produção, da comercialização desses arranjos produtivos. Hoje a gente organiza nossas cooperativas em mais de 15 cadeias produtivas: cadeia produtiva do mel, do arroz, do café, dos grãos, das sementes, das mudas, das frutas — uma diversidade muito grande da nossa produção.

Eu acredito que o grande papel nosso, das mulheres sem terra na produção, principalmente, não é só na produção da subsistência dos quintais produtivos, que é muito importante, porque resgata as nossas sementes, cuida e zela desse patrimônio tão importante para a nossa soberania alimentar, que são as sementes, mas também traz a dimensão da diversidade da produção para que a gente consiga, em escala, produzir alimentos bons, diversos para o nosso povo brasileiro.

Então, o papel das nossas mulheres nas cooperativas, muito importante, é que a gente tem de preservar e cuidar das nossas sementes e da diversidade. Essas sementes que são patrimônio nosso, que potencializam a soberania alimentar para nós e para o mundo.

Letícia – Rio Grande do Sul (Sul)

Meu nome é Letícia, sou do estado do Mato Grosso do Sul, no município chamado Iguatemi. Meus pais foram assentados pela reforma agrária já tem cerca de 20 anos, no assentamento Rancho Loma.

Comecei a me inserir no movimento a partir da minha ida ao Instituto Educar. Fui fazer o curso de agronomia pelo PRONERA e lá comecei a me inserir pelo movimento. Comecei a atuar em algumas cooperativas, tanto no estado de São Paulo, no Paraná, no Rio Grande do Sul, até chegar à Bionatur.

Lá na Bionatur a gente conhece um pouquinho do processo histórico dela, né? Que é uma região ali do município de Candiota, no Pampa Gaúcho. O histórico dela se deu com as famílias agricultoras daquela região, vendo a necessidade de se produzir sementes. Não ter aquelas sementes que estão na mão das grandes empresas da Isla, por exemplo, que têm essa concentração dessas sementes produzidas de formas convencionais, com a utilização de químicos e agrotóxicos.

Essas famílias viram a necessidade de produzir sementes pelo Movimento, mas para aquela região ela se torna estratégica justamente para ter essa semente de qualidade, de forma orgânica, agroecológica. Se uniram, juntaram forças e começaram a produzir as sementes de forma agroecológica.

E aí surge a Bionatur, que agora é nacional. Atuamos em algumas regiões do estado, no Nordeste, no Sudeste, e a gente vem com essa atuação da produção de sementes agroecológicas. Sobretudo, a produção de sementes vem desde nossas ancestrais. Lá do ado, lá com a nossa ancestralidade. É fundamental a participação das mulheres no processo de cultivar, de produzir as sementes.

Somos as grandes guardiãs das sementes produtoras. Então, com certeza, a participação da mulher é fundamental e sempre existiu. Ela é parte fundamental porque é a mulher que vem do cultivo da terra. Somos nós que fazemos todo esse processo de cuidado, armazenamento, plantio, reprodução, multiplicação, ou seja, um conhecimento que é de ar de geração para geração.

A Bionatur tem essa relação com as mulheres, que têm grande participação na produção de sementes porque são elas que guardam e com certeza são fundamentais para esse processo. A gente vê na prática quando faz o acompanhamento dessa família, visita a pessoa que está lá no campo produzindo, que conversa, que conhece. Tem a dona Feliciana, que desenvolveu o tomate Biofeliciana e a gente tem registrado como nosso, do Movimento, semente desenvolvida por uma mão feminina, uma mulher.

Então, isso é fantástico. Quando a gente luta com as famílias, é a mulher que está lá também à frente da produção de sementes, que também cuida. Não está na mão de nenhuma empresa privada, está nas mãos do povo, do Movimento Sem Terra, está na mão da Bionatur, está na mão dela, da dona Feliciana. E a gente tem que disseminar essa semente cada vez mais.

Dona Teófila – Pará (Norte)

Teófila da Silva Nunes. Foto: arquivo pessoal

Eu sou Teófila da Silva Nunes, mas gosto de ser chamada de dona Teo. Estou viúva, tenho 73 anos, sou educadora popular, agricultora e pedagoga e faço parte de uma associação de mulheres agricultoras.

Nosso processo de produção no MST se deu quando ocupamos a terra. Eu e meu marido tínhamos muita preocupação em estar nesse processo de produção de alimentos saudáveis. A gente formava muito o pessoal, os assentados, com essa preocupação de produzir alimentos. Então, começou daí. Como educadora, também saía muito. Depois que meu marido faleceu, tive que assumir o lote totalmente e fui para especialização em agricultura familiar.

Percebemos a necessidade de ter mais gente assim, então construímos um coletivo de mulheres, que logo após se tornou uma associação de mulheres agricultoras. Aí foi ampliando nosso processo produtivo, dando continuidade ao trabalho após a perda do meu marido.

Hoje esse processo produtivo continua em dois eixos: na transformação dos produtos e na culinária da Terra. Nas transformações, produzimos doces, artesanatos, fitoterápicos e, na culinária, a comida da terra.

Hoje percebemos que, depois de 6 anos da fundação do coletivo de mulheres, ele tem contribuído muito com esse processo de produção no Movimento Sem Terra, no avanço contra o machismo e racismo dentro do nosso território. Com as mulheres engajadas hoje como coletivo, assumimos o projeto nacional Plantar Árvores e Produzir Alimentos Saudáveis, de reflorestamento, produção de comida de verdade.

Por isso temos nossos viveiros dentro dos territórios, coletamos e guardamos sementes, temos casas de sementes. E hoje contribuímos na feira em dois espaços: na culinária da terra e nos caminhos da agroecologia, no qual estou representando o estado do Pará, na exposição das sementes do Quilombo Amazônico e nos produtos fitoterápicos oriundos das sementes de andiroba.

É muito bom saber que nós, mulheres, somos importantes nessa produção, nesse processo de continuidade — das sementes, dos viveiros, das mudas, dos alimentos saudáveis. Defender a natureza é nosso papel e nós sempre cumpriremos.

Gosto muito de ser agricultora, gosto muito de discutir a questão feminista, a questão de gênero entre as mulheres do Movimento. Isso me faz muito bem, sou feliz por isso e agradeço termos um espaço para partilhar a produção das mulheres Sem Terra.

Kelha – Ceará (Nordeste)

Kelha. Foto: arquivo pessoal

Sou Kelha, da Direção Nacional do MST no Ceará, do assentamento UBA, em Santa Quitéria, na região Irmã Doroty. Sou fruto da luta pela terra que antecedeu a chegada do MST no Ceará. Antes do MST, a gente vivia sob o domínio dos latifúndios, uma história de negação do o dos camponeses à terra.

No final dos anos 80, em 1989, o MST chegou à região e, dentro desse contexto de resistência, a militância do Movimento deu um grande impulso à luta pela terra no estado, possibilitando a conquista de áreas para as famílias. Nossa primeira ocupação aconteceu em 25 de maio de 1989. Isso ajudou a amenizar os conflitos locais e fortalecer a luta dos trabalhadores e trabalhadoras rurais.

Minha família foi despejada; nossa casa foi derrubada a mando do fazendeiro e não tínhamos para onde ir. Naquela época, o que nos sustentava era a ajuda do padre da paróquia. Eu faço parte de uma das famílias que protagonizou a primeira ocupação de prédio público no Ceará. Em 1988, ocupamos o INCRA junto com outras famílias também despejadas. Entrei no MST em 1997, quando militantes chegaram ao assentamento com uma proposta à frente: a luta por educação. Eu seria educadora na EJA (Educação de Jovens e Adultos), num projeto em parceria com a Secretaria de Educação do Estado.

Com o tempo, me envolvi cada vez mais com o MST e deixei a educação formal para assumir uma posição de dirigente do Movimento. O que eu sou hoje é o resultado da vida coletiva, da nossa organização, que nos ensina e emociona, porque somos o resultado da luta que nos negava um espaço. Sem o MST, não seríamos quem somos.

Na militância, vamos despertando para outras questões, como a participação das mulheres, que ainda é um grande desafio no MST, mesmo com seus 41 anos de existência. Isso se deve à condição de sermos mulheres e à imposição da sociedade capitalista sobre nosso papel. A participação política das companheiras tem avançado, e nas nossas instâncias há a deliberação de garantir 50% de mulheres participando, algo que buscamos cumprir, apesar dos desafios.

Não podemos perder de vista que as mulheres são fundamentais na construção do Movimento e precisamos reconhecer essa contribuição. Como diz nossa música, “sem as mulheres a luta vai pela metade”.

Nos assentamentos, temos conquistado avanços na produção, principalmente no melhoramento e agregação de valor aos produtos feitos pelas famílias camponesas. No chão de fábrica, a participação masculina ainda é muito maior, o que nega às mulheres esses espaços, mesmo que elas estejam na linha de frente do trabalho. É um desafio das mulheres do MST se colocarem cada vez mais nas direções e espaços de decisão da organização.

Devanir – Mato Grosso (Centro-Oeste)

Devani de Araújo. Foto: arquivo pessoal

Meu nome é Devani Oliveira de Araújo, nasci em Minas Gerais, mas estou em Mato Grosso há mais de 20 anos. Minha história é de luta, uma caminhada que começou ainda jovem, aos 20 anos, com a militância sindical em Rondônia. Lá, participei do movimento sindical combativo, e em 1998, junto com outros sindicatos do estado, envolvi-me no debate sobre os rumos do sindicalismo brasileiro, que nos levou a formar o MPA (Movimento dos Pequenos Agricultores).

No MST, já atuei no setor de formação e hoje estou no setor de produção, onde contribuo com as tarefas da grande região Centro-Oeste, que engloba cinco estados, incluindo Rondônia.

A participação das mulheres é fundamental na militância e no acompanhamento do setor de produção, porque as mulheres têm um olhar integral. Quando uma mulher participa, toda a família se envolve na luta e na organização. Isso enriquece a unidade produtiva, pois as mulheres promovem diversidade no plantio e melhorias na alimentação, fortalecendo a relação harmoniosa entre ser humano e natureza.

A presença das mulheres nas associações e cooperativas dos assentamentos é uma preocupação constante. Não é para cumprir cotas, mas porque elas têm uma capacidade única de olhar o todo, perceber detalhes que mantêm o grupo unido, cooperando e pensando no futuro das próximas gerações.

Além da produção, a formação política é essencial, especialmente quando debatemos a agroecologia. Muitas mulheres nos contam que entraram para as associações para produzir alimentos saudáveis e agroecológicos, mas acabam despertando para as diversas dimensões da agroecologia, que é um projeto de vida.

Agroecologia é esperança, determinação, coragem e enfrentamento às violências. É necessário trazer cada vez mais companheiras para essas batalhas. Um destaque importante são os sistemas agroflorestais que implantamos nos assentamentos, parte do Plano Nacional Plantar Árvores e Produzir Alimentos Saudáveis, lançado em 2020.

Esse plano é um contraponto ao projeto do agronegócio, que é um projeto de morte e acumulação sem limites. Nossa reforma agrária popular discute a relação com a natureza, reforçando a diversidade e a capacidade das mulheres de gerir essa diversidade produtiva.

Nos quintais produtivos, a ideia é diversificar, plantar árvores e produzir alimentos ao mesmo tempo, porque essas coisas andam juntas. A agroecologia nos ensina que o solo é um organismo vivo e precisa ser cuidado. É um projeto de vida que envolve formação, luta e construção coletiva.

*Editado por Fernanda Alcântara