Educação Antirracista
Questão racial e Educação do Campo, semeando frutos da Lei nº 10639/2003
Artigo ressalta conquistas e lutas da lei que garante o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira

Por Simone Magalhães e Kabirosí (Eduardo Gomes)*
Da Página do MST
Hoje, dia 09 de janeiro de 2024, a lei que criou a obrigatoriedade do ensino de História e cultura africana e afro-brasileira na educação nacional completa 21 anos. A promulgação da Lei nº 10.639 de 09 de janeiro de 2003 possibilitou a inclusão, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), do artigo 26-A, que estabelece no currículo da educação básica, das redes pública e privada, deve contemplar “o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil”. Os conteúdos devem ser trabalhados em todo o currículo escolar, com especial destaque no âmbito das áreas de História Brasileira, Educação Artística e Literatura (BRASIL, 2003).
A alteração da LDB para garantir o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira, e, posteriormente, em 2008, com a promulgação da Lei nº 11.645 que estabeleceu a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura dos Povos Indígenas, significou um avanço no processo de lutas e debates empreendidos pelo movimento negro e movimento indígena para o enfrentamento do racismo estrutural e institucional na sociedade brasileira, pois assegurou à toda a sociedade o direito a uma educação antirracista. Embora seja possível celebrar conquistas no que se refere à promoção da valorização da diversidade que compõe a sociedade brasileira trazida pela Lei 10.639/2003 nesses 21 anos, é imperativo também refletir sobre os enormes desafios encontrados para o seu efetivo cumprimento no contexto escolar.
Nesse sentido, destaca-se a pesquisa “Percepções do Racismo no Brasil”, lançada em julho de 2023, por iniciativa da Peregum-Instituto de Referência Negra e do Projeto SETA – Sistema de Educação por uma Educação Antirracista. A referida pesquisa identificou que para 69% das pessoas entrevistadas o tema mais importante, central, a ser abordado na escola deve ser o racismo. Já os outros temas como “história e cultura afro-brasileira”, “história e cultura indígena”, “igualdade entre homens e mulheres” e a “forma como a sociedade entende as pessoas do sexo masculino e feminino” foram apontados como temas subsequentes. A referida pesquisa também mostrou que a forma como os temas de história e cultura africana, história e cultura afro-brasileira, história e cultura indígena e racismo foram tratados no ambiente escolar foi considerada pouco ou nada adequada pela maioria das pessoas entrevistadas. Conforme indica a pesquisa:
Mais da metade das pessoas entrevistadas, de todos os níveis educacionais, consideram que a forma que esses temas foram abordados na escola é pouco ou nada adequada, evidenciando uma lacuna no ensino-aprendizagem. Ou seja, ainda que as pessoas respondentes possam ter concluído seus estudos antes ou após a criação das leis n. 10.639/2003 e n. 11.645/2008, esses temas não foram considerados relevantes e prioritários para que a abordagem fosse realizada de modo adequada.
(Peregum; SETA, 2023)
Os esforços empreendidos pelo movimento negro para a incidência na elaboração de políticas sociais de combate ao racismo foram inúmeros ao logo da nossa história, e a sua colaboração ativa no processo de implementação da Lei nº 10.639/2003 culminou com o parecer aprovado no Conselho Nacional de Educação (CNE), relatado pela professora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, que estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africanas.
Esse movimento de incidência sobre uma política educacional demonstra que o Movimento Negro tem a educação como estratégia para o enfrentamento ao racismo da sociedade brasileira. Ademais, considera a educação importante dimensão para a promoção positiva das relações étnico-raciais e para a democratização de nossa sociedade. Nesse sentido, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais é um dispositivo legal fundamental para a implementação da Lei nº 10.639/2003 e importante referencial para os agentes públicos responsáveis pela elaboração, execução e avaliação de conteúdos programáticos a serem desenvolvidos nos estabelecimentos educacionais.
Nesse sentido, a pesquisa realizada pela Peregum-Instituto de Referência Negra e pelo Projeto SETA – Sistema de Educação por uma Educação Antirracista aponta para a necessidade da atuação do Estado, no campo educacional, para o monitoramento e a avaliação da implementação das leis nº 10.639/2003 e 11.645/2008, bem como para a realização, entre outros, de:
Formação continuada centrada na educação para as relações étnico-raciais, as práticas equitativas e a história e cultura africana, afro-brasileira e dos povos indígenas com foco nos docentes, gestores e na equipe técnica das secretarias de educação;
e psicossocial para as pessoas que sofrem ou sofreram racismo;
Criação de fluxo para recebimento, tratativas e encaminhamentos de soluções para denúncias de casos de racismo;
Políticas intersetoriais com foco na redução das desigualdades provocadas pelo racismo;
Ações de equidade com foco na população com deficiência, sobretudo no setor da educação, em uma perspectiva inclusiva, interseccional e não segregada;
Monitoramento contínuo da implementação da Lei n. 12.990/2014, que institui a reserva de vagas para pessoas pretas e pessoas pardas em concursos públicos federais;
Incentivo à contratação de pessoas pretas, pardas e indígenas para o quadro de funcionários efetivos e temporários de instituições privadas e públicas (municipais e estaduais) (Peregum; SETA, 2023).
A Lei nº 10.639/2003 no MST
No esforço da aplicação da Lei nº 10.639/2003 nas unidades escolares situadas em áreas de assentamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) podemos destacar a experiência da Escola Técnica em Agroecologia Luana Carvalho (ETALC), localizada no assentamento Josiney Hipólito, município de Ituberá, na região do Baixo Sul da Bahia. Desde a conquista da Escola em 2016, o coletivo de educadores e educadoras da ETALC compreendeu a necessidade de intensificar os estudos dos temas e objetivos pertinentes à implementação da Lei nº 10.639/2003, para pensar as questões raciais e envolver todo o coletivo escolar, em especial os educandos e as educandas, no debate de questões mais globais e estruturais, ando por questões étnico-raciais específicas do Brasil até as questões étnico-raciais locais, particularmente aquelas que se relacionam com o conflito e a luta pela o e permanência na terra no Baixo Sul da Bahia. Assim, a ETALC vem se aprofundando sobre as diversas faces do racismo e a relação entre Terra, Raça e Classe no contexto da classe trabalhadora do campo que em sua maioria absoluta é negra, isso, sem perder de vista todo o acúmulo histórico do processo de lutas na região. Sankofar é necessário!
É desse esforço que surgem diversas ações entre 2019 e 2022, envolvendo educandos e educandas do curso Técnico em Agroecologia da ETALC, que contou também com a participação da Escola do Campo Ojefferson Santos e com a colaboração de parceiros, amigas e amigos para a elaboração de materiais sobre o tema. A cartilha “Luanas Negras: Questão racial e Educação do Campo” é um material didático sistematizado com o objetivo de fomentar, nortear e apoiar as unidades escolares para elaboração de conteúdos em atendimento da Lei nº 10.639/2003, bem como para o e ao enfrentamento das questões raciais nas escolas, em particular nas unidade educativas em área de assentamento do MST em nosso país. Vale salientar que este material está para ser lançado durante o 9⁰ Curso Nacional de Pedagogia do Movimento Sem Terra que está acontecendo na Escola Popular de Agroecologia e Agrofloresta Egìdio Brunetto (EPAAEB) até o próximo dia 21 de janeiro.

Para além do material sistematizado em cartilha e da realização da Semana da Consciência Negra na escola durante o Novembro Negro, ressaltamos que os temas concernentes à Lei nº 10.639/2003 são trabalhados durante todo ano no âmbito da disciplina de História e Cultura Indígena, Africana e Afro-brasileira.
Embora celebremos a criação deste importante marco legal, a Lei 10.639/2003, enquanto instrumento para a garantia de uma educação verdadeiramente democrática, é preciso salientar que ainda há muito o que fazer e um longo caminho a percorrer para a construção de uma educação antirracista. Reconhecemos que o Estado deve garantir todas as condições para a implementação efetiva desta política educacional, de uma educação pública de qualidade e socialmente referenciada. Todavia, é preciso que o poder popular continue exigindo do Estado a efetivação do direito a uma educação antirracista, e também permaneça na luta pela construção, a partir dos territórios, da educação diversa e democrática que precisamos e merecemos!
*Kabirosí é educador da Escola técnica Luana de Carvalho do MST. Os dois integram o Grupo de Estudos Terra, Raça e Classe.
**Editado por Fernanda Alcântara