Direitos Humanos

3ª revisão do Brasil pela ONU demonstra longo caminho para a efetivação de Direitos Humanos

Sabatina das Nações Unidas analisou o grau de cumprimento do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos

Sessão sobre Direitos Políticos e Civis, no Conselho de Direitos Humanos da ONU, Genebra – SWI. Foto: Camila Gomes/ Terra de Direitos

Por José Odeveza
Do Terra de Direitos

Nesta segunda e terça-feira (26 e 27/06), depois de quase 20 anos, o Brasil foi interpelado pelo Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas (ONU) sobre o 3° relatório periódico do país sobre o cumprimento do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos – um dos instrumentos que constituem a Carta Internacional de Direitos Humanos. O relatório brasileiro que deu início ao processo de revisão foi apresentado pelo governo de Jair Bolsonaro, com complementações da atual gestão de Luiz Inácio Lula da Silva.  

O Brasil foi questionado por 18 peritos (as) independentes que compõem o órgão internacional. Entre os principais questionamentos estiveram as ações de combate a pandemia; violência de gênero e contra população LGBTQIA+; violência policial e situação carcerária; combate ao discurso de ódio Fake News e violência política; combate a corrupção; legislação sobre terrorismo; proteção a defensores de direitos humanos e ambientais; direitos dos povos indígenas e direitos territoriais; racismo e direitos da população afrodescendente; falhas no funcionamento do sistema de justiça; combate do trabalho escravo.  

Na avaliação da coordenadora de incidência e litigância internacional da Terra de Direitos, Camila Gomes, “os peritos que analisaram o estado brasileiro estavam muito antenados e munidos de informações sobre a situação dos direitos humanos no Brasil”, muitas das quais fornecidas pela sociedade civil. A advogada pontua que a proteção territorial para mitigação de conflitos foi objeto de diversas recomendações feitas pelo Comitê. “No relatório apresento ao Comitê, nós enfatizamos a importância da proteção territorial para a garantia de uma série de direitos previstos no PID, além da sua relação direta com o direito de o aos recursos naturais. Esse debate foi fortemente aceito pelo Comitê que ressaltou a necessidade de demarcação de territórios indígenas e da retomada da proteção do direito à terra no país”.  

O Pacto Internacional estabelece a obrigação dos Estados-partes promoverem e protegerem garantias essenciais. Entre elas liberdade de pensamento, de consciência e de religião; direito à vida, a não ser submetido à escravidão e ao tráfico de pessoas; não ser submetido à tortura, penas ou tratamento cruéis; igualdade perante tribunais e cortes de Justiça; ter direito à liberdade e à segurança pessoal e, também, à livre circulação. Nas reuniões do Comitê, os Estados-partes apresentam relatórios em que informam ações e medidas adotadas para cumprir o Pacto. 

Neste ano a Terra de Direitos, junto ao King’s College London e a organização Clean Trade, subsidiou a avaliação do Brasil com um relatório paralelo ao do governo brasileiro, focado no direito aos recursos naturais, previsto no art. 1 da Convenção de Direitos Civis e Políticos da ONU. O documento destaca a situação da reforma agrária, de povos indígenas, comunidades quilombolas, povos e comunidade tradicionais ao longo dos últimos anos, e a alarmante situação de violência e hostilidade contra esses grupos.  

Confira o relatório completo produzido pelo Transnational Law Institute da King´s College London, Clean Trade e pela Terra de Direitos para Revisão do Brasil no Comitê de Direitos Humanos.  

Segundo o professor Octávio Ferraz, coordenador do Transnational Law Institute do King’s College London, “os membros do Comitê se engajaram e questionaram o Brasil, de modo contundente, sobre como o país irá proteger o direito de o à terra de todas as comunidades tradicionais que sofrem violações a esse direito”.  

Pandemia  

Dentro os inúmeros temas debatidos durante a 138a. Sessão do Comite de Direitos Humanos, teve destaque a má gestão da pandemia pelo estado brasileiro, à luz das obrigações assumidas a partir da ratificação do PID. O Comitê de Direitos Humanos pontou falhas nas medidas adotadas pelo governo de Jair Bolsonaro – como a falta de campanhas de conscientização da população-, e qualificou como extremamente elevado o número de mortes registradas no país – mais de 700 mil pessoas até este ano. A presidente do Comitê, Tania Maria Abdo Rocholl, questionou quais medidas foram tomadas para proteger grupos mais vulneráveis, como indígenas e negros.  

Em 2020 o Brasil já havia sido denunciado por organizações brasileiras em razão de omissões na condução de políticas públicas integradas voltadas para grupos mais vulneráveis na pandemia de covid-19, como na oferta de serviços essenciais e auxílios emergenciais.  

Liberdade de expressão e o à justiça 

O Comitê também registrou na revisão ponderações sobre legislações em trâmite e que atentam contra o Pacto Internacional, entre elas as modificações relativas ao combate ao terrorismo. Recentemente foi aprovado pelo Senado Federal, sem amplo debate público, o Projeto de Lei 3283/2021, de autoria do senador Styvenson Valentim (PODEMOS/RN) que alterara a Lei Antiterrorismo – principal legislação nacional sobre o tema.  A sociedade civil brasileira denuncia que a proposta – assim como outras já apresentadas – traz conceitos extremamente amplos para práticas terroristas, com riscos de má aplicação da lei, como a tipificação de crime para manifestações políticas.  

O texto do PL, que agora será analisado pela Câmara dos Deputados, já havia sido criticado pela Organização dos Estados Americanos (OEA) e Organização das Nações Unidas (ONU), que consideraram que a sua abrangente definição poderia causar restrição as liberdades fundamentais. 

Violência contra defensores e defensoras de direitos humanos  

Os dados alarmantes sobre violência no Brasil também tiveram destaque na revisão. Na questão de defensores de direitos humanos e do meio ambiente, os peritos cobraram ações concretas do Brasil para proteção efetiva de quem luta por direitos, com foco especial para a população indígena. Os peritos cobraram o andamento das investigações do assassinato do indigenista Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips, que foram mortos a tiros no dia 5 de junho de 2022 ao voltarem de uma expedição pelo Vale do Javari (AM), terra indígena ameaçada por garimpeiros, pescadores ilegais, madeireiros e traficantes de drogas. Os dois defensores de direitos humanos tiveram os corpos queimados e enterrados no meio da mata.   

Em junho deste ano a Terra de Direitos e a Justiça global apontaram em estudo, que 169 defensoras e defensores de direitos humanos foram assassinados no Brasil nos últimos 4 anos.  

Os peritos (as) cobraram medidas concretas contra os diferentes tipos de violências cometidos contra defensores de direitos humanos, e no sentido da institucionalização do programa de proteção, garantia de orçamento e implementação em todos os estados da federação, além de medidas específicas para mulheres, indígenas e outros grupos.  

No campo da violência também foram cobradas ações mais estruturadas em relação a vida de mulheres. Os peritos destacaram o elevado índice de violência política contra mulheres, em especial mulheres negras, o assédio moral e sexual, relatos de fraude nas cotas de gênero nas eleições; e o elevado número de assassinatos contra a população transexual e travesti.

I contra o MST e a criminalização da luta pelo direito de o à terra

Foto: Reprodução 

Outro ponto destacado com participação da sociedade civil brasileira se deu entorno da Comissão Parlamentar de Inquérito (I) instalada em 2023 para investigar a atuação do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Diretamente de Genebra, Lucinéia Durães, da Direção Nacional do MST apontou a sistemática ação do grupo de parlamentares vinculados agronegócio contra o movimento.  

“Em diversos momentos da história do nosso país, como o atual, nos deparamos com um processo de violência e criminalização, promovido por diversos setores, especialmente pelos latifundiários e o agronegócio, hoje amplamente representado no congresso nacional. Os trabalhos desta I têm sido marcados por abusos na realização das diligências, invasão de domicílio de famílias camponesas, num procedimento investigativo sem objeto definido e à margem da lei”, ressalta Durães.  

A dirigente do MST complementa reforçando que “o que está acontecendo é reflexo de um segmento do Congresso Nacional que não tem medido esforços para criminalizar não apenar o MST, mas as diversas organizações que lutam pelo direito de ar a terra no Brasil”. 

Racismo, violência policial e sistema carcerário  

O comitê também questionou sobre a triste e antiga realidade da violência policial no país e do sistema carcerário. O Comitê cobrou dados sobre a temática, especificamente sobre morte da população negra, ações policiais em comunidades periféricas, além da necessidade de se aprimorar os mecanismos de investigação e responsabilização da polícia.   
 
Segundo dados expostos pelos peritos, a população negra representa 60% dos casos de violência policial no estado de São Paulo e o número fica ainda mais crítico no rio de Janeiro, representando 90% das vítimas.    

Instituição Nacional de Direitos Humanos  

A necessidade de uma Instituição Nacional de Direitos Humanos (INDH) no país havia sido objeto de diversas recomendações durante a última Revisão Periódica do Brasil (RPU, as quais foram aceitas pelo Estado brasileiro em março deste ano, e voltou a ser abordada pelo Comitê essa semana.  

A perita Yvonne Donders registrou que o Brasil ainda não possui uma INDH e questionou se o Brasil pretende implementar uma instituição semelhante. Indagado pelo perito Rodrigo Carazo sobre o seu compromisso com o reconhecimento do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) como a INDH brasileira, o Estado brasileiro respondeu assertivamente sobre a medida a ser tomada, garantindo que o CNDH deve ser reconhecido como tal.   

Pela primeira vez nos seus quase dez anos de funcionamento, o CNDH participou presencialmente da revisão por órgão de tratado das Nações Unidas. Ocupante de uma das vagas destinadas à sociedade civil no CNDH, a Terra de Direitos foi incumbida de representá-lo em Genebra.  

Em diálogo com os peritos e peritas, o CNDH registrou em seu informe que “uma parte relevante das violações ao PID que ocorrem no Brasil estão relacionadas ao contexto de conflitos fundiários”. Desse modo, “um compromisso com a retomada da política de regularização fundiária, em termos de estrutura institucional e orçamentária, é, portanto, medida urgente para cumprimento das obrigações consolidadas no PID”.  

Caminhos a percorrer  

Assim como aconteceu durante a RPU no âmbito do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, a revisão do Brasil pelo Comitê de Direitos Humanos revela um cenário de graves violações a direitos de caráter estrutural, mas que foram potencializadas e aprofundadas pela agenda anti-direitos do governo Bolsonaro. Segundo Camila Gomes, “o desafio é imenso e as recomendações que serão apresentadas ao Brasil pelo Comitê nas próximas semanas servirão de guia para a superação desse quadro e reconstrução das políticas públicas de direitos humanos no país”.   

O relatório apresentado pelo Brasil em 2020 deveria ter sido apresentado em 2009, fazendo com que a revisão precisasse se debruçar sobre um período de quase 20 (vinte) anos, o que dificulta o monitoramento das recomendações. O enfrentamento do grave cenário de violações a direitos no Brasil a por um maior engajamento do país com os mecanismos de revisão e apresentação periódica de informações.  

A participação da Delegação brasileira reforçou a postura de reposicionamento do país em diversas agendas de direitos humanos na seara internacional. Após a revisão, a Delegação brasileira recebeu diversos movimentos sociais e organizações da sociedade civil no prédio da Missão Permanente em Genebra, reforçando a retomada de diálogo.